Na segunda, Bolsonaro afirmou "conter a
verdade" sobre paradeiro de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão,
do Ministério Público Federal, avalia que a declaração do presidente Jair
Bolsonaro sobre o desaparecimento de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira - pai do
presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz -
"reveste-se de enorme gravidade, não só pelo atrito com o decoro ético e
moral esperado de todos os cidadãos e das autoridades públicas, mas também por
suas implicações jurídicas".
Na segunda-feira, Bolsonaro fez comentário sobre
a atuação do Conselho Federal da OAB, no episódio da tentativa de quebra do
sigilo do advogado de Adélio Bispo, que o esfaqueou no dia 6 de
setembro de 2018, em Juiz de Fora (MG). O presidente queixou-se da Ordem
e apontou para o pai de Felipe. "Um dia, se o presidente da OAB quiser
saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele.
Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a
minha vivência me fez chegar a essas conclusões naquele momento. O pai dele
integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de
Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro", disse.
Sofrimento
Em nota
pública, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão ressalta que
"raras situações provocam tanto sofrimento quanto o desaparecimento de um
ente querido". "No Brasil, mais de 80 mil famílias se deparam, a cada
ano, com a situação de desaparecimento, de distintas origens: problemas
sociais, de saúde e desaparecimentos violentos", assinala a Procuradoria.
"Todas sofrem, quase sempre silenciosamente,
essa dor perene, que não cessa enquanto não se descobre o paradeiro da pessoa
querida". "O respeito a esse penar é um sinal de humanidade e
dignidade, praticado por distintas civilizações e todas as religiões. O direito
a um funeral é, aliás, parte essencial de qualquer cultura humana e sua
supressão, um dos mais graves atos de crueldade que se pode impor a uma
família", afirmam a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah
Duprat, e o procurador-adjunto Marlon Weichert.
A Procuradoria dos Direitos do Cidadão enfatiza
que "o crime de desaparecimento forçado é permanente, ou seja, sua
consumação persiste enquanto não se estabelece o paradeiro da vítima".
"Qualquer pessoa que tenha conhecimento de seu destino e intencionalmente
não o revela à Justiça pode ser considerada partícipe do delito."
Ainda de acordo com a Procuradoria Federal dos
Direitos do Cidadão, "o desaparecimento forçado por agentes do Estado ou
por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou
aquiescência do Estado, é uma grave violação aos direitos humanos, conforme
estabelecem duas convenções internacionais promulgadas e ratificadas pelo
Brasil". "É um crime internacional quando praticado no contexto de
uma perseguição generalizada e sistemática a uma população civil, nos termos do
Estatuto de Roma."
A Procuradoria observa que "o
desaparecimento forçado é um dos crimes internacionais que merece a mais severa
sanção, posto que reúne diversas ações ilícitas que se originam com a prisão ou
detenção ilegal, perpassam a prática de tortura, falsidade sobre o paradeiro,
subtração de provas, obstrução da Justiça e, quase sempre, culmina no homicídio
e na ocultação de cadáver". "Qualquer autoridade pública, civil ou
militar, e especialmente o Presidente da República, é obrigada a revelar
quaisquer informações que possua sobre as circunstâncias de um desaparecimento
forçado ou o paradeiro da vítima", diz a nota pública.
O órgão do Ministério Público Federal ressalta
que "embora seja grave o desaparecimento de pessoas por parte de
organizações criminosas, é incomparavelmente mais sério quando perpetrado pelo
Estado, responsável por cumprir a lei e garantir aos acusados proteção à vida e
à integridade física, além da sua responsabilidade pela garantia dos direitos
fundamentais do cidadão, tais como devido processo legal, presunção de
inocência, inafastabilidade da jurisdição, proibição da pena de morte e
proibição da tortura".
Crime
contra a humanidade
No documento, a Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão relembra que o Brasil foi condenado, em duas oportunidades - nos
casos Vladimir Herzog e Gomes Lund - pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos pela prática de crimes contra a humanidade e de graves violações aos
direitos humanos durante a ditadura militar, sentenças nas quais foi
determinado que o Estado promovesse a investigação, o julgamento e a punição
pelos crimes de desaparecimento forçado de pessoas, execuções sumárias e
tortura.
A Corte decidiu, inclusive, que a privação do
acesso à verdade dos fatos sobre o destino de um desaparecido constitui uma
forma de tratamento cruel e desumano para os familiares e, por si só, é uma
grave violação aos direitos humanos. "A ditadura militar e sua decorrente
violação de direitos humanos foram objeto da Comissão Nacional da Verdade
(CNV), criada pela Lei nº 12.528/2011", acentua a Procuradoria. "Seu
relatório é um documento legal produzido para elucidar fatos que possuíam
versões conflitantes, conferindo a expressão da 'verdade estatal', a qual deve
ser observada pelos órgãos da administração pública."
No documento, pontua a Procuradoria, consta que o
desaparecimento forçado de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi
investigado pela Comissão Nacional da Verdade, e, anteriormente, pela Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia. À
época, o pai do presidente da OAB era funcionário público, com emprego fixo e
integrava a Ação Popular. Ao contrário de outros militantes da época, não
estava na clandestinidade, diz a Procuradoria. "Também não consta registro
nessas comissões de que tivesse tido participação em algum ato da luta armada."
Fernando foi visto pela última vez quando deixou
a casa de seu irmão, no Rio, em 23 de fevereiro de 1974. Provavelmente, foi
preso junto com Eduardo Collier Filho por agentes do DOI-CODI do I Exército e,
em momento incerto, transferido para o DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, à
época dirigido por Carlos Alberto Brilhante Ustra. A suspeita é que Fernando
Augusto "tenha sido assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ)".
A Comissão Nacional da Verdade, acrescenta a
Procuradoria dos Direitos do Cidadão, concluiu que Fernando Santa Cruz foi
"preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido,
sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família. Essa ação
foi cometida em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos
perpetradas pela ditadura militar instaurada no Brasil em abril de 1964".
A Procuradoria observa, na nota pública, que
"não é a primeira vez que o presidente da República se manifesta em
aprovação à violação de direitos humanos na ditadura militar". "Em
março de 2019 estimulou a celebração do golpe de Estado de 1964 e, em 19 de
julho deste ano, expressou-se de modo deletério à jornalista Miriam Leitão, que
foi vítima de prisão ilícita e tortura durante o regime militar."
"A jornalista estava grávida à época e foi
submetida a sevícias diversas, durante 2 meses. Processada na Justiça Militar,
foi absolvida. Naquela ocasião, o mandatário do Poder Executivo fez alusão a
informações que contradizem as evidências até hoje colecionadas sobre as graves
violações aos direitos humanos perpetradas a Miriam Leitão", pondera a
Procuradoria.
Para órgão do Ministério Público Federal, as
declarações de Bolsonaro são graves porque "a responsabilidade do cargo
que ocupa impõe ao Presidente da República o dever de revelar suas eventuais
fontes para contradizer documentos e relatórios legítimos e oficiais sobre os
graves crimes cometidos pelo regime ditatorial". "Essa
responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz,
pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o
direito considera em andamento."
A Procuradoria conclui a nota afirmando que não
há sigilo sobre esses dados, conforme a Lei de Acesso à Informação", e que
a Constituição "exige do Chefe de Estado que aja com moralidade,
legalidade, probidade e respeito aos direitos humanos".
Por AE
Correio do Povo
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