domingo, 26 de maio de 2013

Três anos após deixar comunidade terapêutica homem se mantém longe do vício da droga

Rodrigo, hoje com 37 anos, vive sem recaídas depois de passar nove meses internado para tratamento
Três anos após deixar comunidade terapêutica homem se mantém longe do vício da droga Bruno Alencastro/Agencia RBS
Depois de trilhar um caminho muito próximo do "inferno", Rodrigo de Souza Barros chega a gastar 12 horas por dia trabalhando como auxiliar em loja de móveisFoto: Bruno Alencastro / Agencia RBS

Há três anos, Zero Hora acompanhou o dia em que Rodrigo de Souza Barros deixou a comunidade terapêutica Fazenda do Senhor Jesus, em Viamão. Depois de nove meses de tratamento para o vício em crack, chegava a hora de conhecer uma vida em abstinência. 

Hoje, aos 37 anos, empregado em uma loja de móveis da Capital, Rodrigo comemora o período sem recaídas e conta como é a rotina de um dependente químico para sempre em recuperação.

Três anos depois, Rodrigo é o mesmo e é outro também. Mentaliza um ensinamento bíblico para nortear a rotina regrada que preenche os dias desde que deixou a Fazenda do Senhor Jesus, na Lomba Verde, interior de Viamão, após nove meses de tratamento. "Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras", diz o trecho do quarto capítulo de Efésios no Novo Testamento. 

Aos 37 anos, ele não pode se desvencilhar por completo da lembrança do dependente químico maltrapilho, que trocou um casamento, os móveis da casa e a dignidade por pedras de crack, para não turvar a vista e perder os parâmetros. "Revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade." Em abstinência há três anos e nove meses, Rodrigo toca uma nova vida, mas carrega pesadelos de outros tempos.

— Desde a hora em que acordo até a hora em que vou dormir, não faço nada do que um dia eu fiz. É como tirar uma casca ruim e ser um novo cara. Velho homem, novo homem. Foi assim. Hoje eu não sou nem parecido com o que um dia eu fui. Me cuido nos detalhes, me policio para não errar em nada. Sei aonde comportamentos negativos me levaram. Só plantava o inferno, na minha vida e na vida de todo mundo que me cercava — conta o auxiliar estoquista de uma loja de móveis.

Uma reportagem publicada em Zero Hora, em maio de 2010, detalhou o dia em que Rodrigo deixou a comunidade terapêutica administrada pela Pastoral de Auxílio ao Toxicômano (Pacto — POA). Transcorrido o período simbólico de uma gestação, para marcar a desintoxicação e o renascimento do usuário, o porto-alegrense reuniu os poucos pertences e retornou para a residência da mãe, no bairro Santa Cecília, na Capital.

Trilha religiosa no lugar de bandas de rap

Foi recebido com um almoço especial, na companhia dos irmãos e da sobrinha. Dentre tantos que viriam, era o primeiro recomeço, depois de quase duas décadas dormentes pelo consumo de álcool, maconha, cocaína e crack. 

Descobrira-se um católico fervoroso durante a reclusão, e era com orações e hinos de louvor que tentava afastar a lembrança ainda nítida do que sentia à primeira tragada. Nunca teve uma recaída.

— Em data festiva, não vou mentir que não vem a vontade de tomar uma ceva gelada. Mas de pedra, graças a Deus, eu não consigo mais lembrar, em nenhum momento, com prazer — garante.

Rodrigo credita o discernimento a tudo que leu sobre o tema. Abandonou a escola com a 7ª série incompleta — há pouco, concluiu o Ensino Fundamental em um programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) —, mas quem o observa acredita estar diante de um estudioso das ciências biológicas. 

Disseca o corpo humano em explanações, descreve reações químicas, nomeia as funções de hormônios. Sabe que bastaria um gole como gatilho — no restaurante, confirma se o sagu exposto no bufê de sobremesas foi preparado com vinho, e então escolhe outro doce.

Acomodou-se em uma agenda sem sobressaltos: acorda às 6h30min, pega duas conduções até o trabalho, toma café com os colegas, divide-se entre o depósito e as entregas com o caminhão, retorna à noite. 

Nos fones de ouvido conectados ao telefone, trocou as bandas de rap por Walmir Alencar e Irmão Lázaro, trilha religiosa que o inspira para os finais de semana, quando se apresenta ao violão em duas igrejas.

— Celular... hoje eu consigo ter até celular! — surpreende-se, exibindo o aparelho. — Antes, estava sempre empenhado com o traficante.

Frequenta parques para tomar chimarrão e gosta de bater papo em sites de namoro. Descarta as pretendentes muito festeiras ou que confessam gostar de "provar uma coisinha". Antes de conhecer alguém pessoalmente, faz questão de se apresentar como dependente químico. Os diálogos costumam ser semelhantes, e ele garante que a sinceridade não provoca desistências.

— O que você usou? — questiona uma menina no chat, repetindo a pergunta de várias outras quando confrontadas com a mesma revelação.

— Usei de tudo — responde Rodrigo.

— Até crack?

— Até crack.

Algumas situações o empurram ao passado

Rodrigo trabalhou em dois estacionamentos e lavagens de carro, duas lojas de móveis e duas comunidades terapêuticas, onde conviveu com adolescentes e adultos devastados pelas mesmas substâncias que lhe atordoaram a juventude. 

   Em maio de 2010, Rodrigo voltou para casa depois de nove meses 
   Foto: Genaro Joner / Banco de Dados

Testemunhou violentas crises e não consegue esquecer a cena de um garoto batendo a cabeça na parede, desesperado com a privação do uso de crack, durante uma reunião para estudo da Bíblia. Tentou deter os mais afoitos contando a própria história. Viu internos tendo alta e sendo trazidos de volta, semanas depois, derrotados outra vez, para uma nova tentativa. Ao final dos expedientes mais difíceis, Rodrigo procurava refúgio na capela.

— Fundo de poço não se mede, mas eles passaram por coisas que eu não cheguei a fazer — reflete, salientando que nunca se meteu em ocorrências policiais. — O grande problema da pedra, hoje em dia, é que a coisa é muito rápida. O cara fuma maconha, dá uns tequinhos, aí fuma pedra e deu. Já vai para a marginalidade e perde as rédeas da situação. Na minha adolescência, a moda era fumar maconha. Cocaína já era mais difícil de conseguir. Hoje a pedra é muito fácil — compara.

Mesmo cuidando por onde anda, é impossível não deparar com situações que o empurram para o passado. Não frequenta festas ou ambientes onde se consome muita bebida, mas recorda bem da primeira vez, após a alta, em que viu alguém fumando a pedra. Identificou ao longe, em uma praça, o brilho do isqueiro acendendo um cachimbo.

— Foi bem ruim. Não foi fissura, não foi vontade de ir ali dar um pega. Foi medo, muito medo. Dentro da comunidade, você vê tanta gente saindo e tanta gente recaindo que não tem como não ficar apavorado — descreve. — Ou o cara escolhe a vida, para sair fora desse atoleiro todo, ou escolhe a morte.

O terror da recaída é presença constante

Mesmo depois de uma internação e de um longo tratamento seguido à risca, o dependente químico não pode se considerar curado. A vigilância será permanente, pois o menor deslize representará sempre o terror da recaída. 

Habituado a testemunhar as dificuldades de quem tenta abandonar o vício, Flavio Pechansky, diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), exalta o feito de Rodrigo. Para o especialista, também chefe do Serviço de Psiquiatria de Adição do HCPA, os casos resilientes são os que mais atraem o interesse dos pesquisadores. A ciência, explica o médico, avança a partir dos casos atípicos.

— Ele usava crack, uma das drogas mais intensas. Perde o efeito em minutos, o que faz com que o usuário use dezenas de pedras por dia. O que ele tem, que os outros pacientes em volta não têm, que faz com que a condição de recuperação seja maior? Imagina o esforço do cérebro para poder viver sem isso, a quantidade de movimento neuroquímico que ele teve que fazer para aprender a tolerar não receber crack a cada meia hora. Isso implica um esforço tremendo. Ele quebrou a regra — comenta Pechansky. — É como subir o Everest. Sem oxigênio.

Rodrigo se programa para o Ensino Médio

Há também frustrações. Passado o alívio dos meados de 2010, quando Rodrigo foi recepcionado de volta recitando promessas para o futuro, veio a desmobilização. Hoje nenhum integrante da família Barros frequenta encontros de grupos de apoio. 

Desistiram pouco a pouco: primeiro o irmão, depois a irmã, a mãe, o próprio Rodrigo. Ele culpa o horário apertado no serviço e diz compensar a falha com os compromissos na igreja e a convivência com ex-internos comprometidos com a recuperação.

A mãe, Guacira Jussara, 59 anos, justifica que não teve condições de continuar — desgostosa com um episódio, conta que se atacou dos nervos, chorou de soluçar. Anda preocupada porque o filho voltou a fumar e se perturba com alguns conflitos mais ásperos, pois a instabilidade doméstica é sempre um dos principais fatores a tragar quem busca a sobriedade. 

A pensionista se ampara na fé, vai à missa todo sábado e senta bem na frente para ver o primogênito tocando. Apresentou-se ao padre como mãe do violonista e agradeceu pela oportunidade.

— Meu filho nunca tinha me dado um orgulho. Meu filho tinha um passado podre. Sinto muito orgulho. É como se ele tivesse feito uma faculdade — desabafa Guacira, chorando muito. — Ele não recaiu por Deus. Somente por Deus. Tive provas de que Deus falou comigo. Apesar de dizerem que isso não tem cura, eu digo que ele está curado. Deus não vai botar meu filho de novo no inferno — completa.

Nesses anos menos turbulentos, Rodrigo teve uma filha. Acaba de se instalar no andar de baixo da casa da mãe, desocupado pelo irmão, que se mudou para São Paulo. Constrange-se pela desordem causada pela troca de moradores e faz planos para ocupar o vazio dos seis cômodos, em mais um recomeço. 

Reservou um quarto para a menina, pretende pintá-lo de rosa ou alguma outra cor clara, talvez escolher um papel de parede, decorá-lo com os personagens do desenho animado Backyardigans. Tudo para fazer com que ela se sinta bem ao visitar o pai.

— Sou agradecido por ela ter vindo só agora. Imagina se fosse na época da ativa?

Rodrigo se programa ainda para ingressar no Ensino Médio e, enfim, habilitar-se para um curso técnico no campo da saúde. Instrumentação cirúrgica ou radiologia, quer descobrir do que gosta mais. Empolga-se com a singeleza dos projetos que traça.

— Pode ser até meio sem graça, na opinião de algumas pessoas, mas sabe aquela vida pacata? Churrasquinho de fim de semana, missa às 19h30min, dar uma volta na Redenção, tomar um mate, ir ao cinema... Sabe?

A RECUPERAÇÃO

O tratamento de um dependente químico passa por quatro etapas

— Primeira (três a quatro meses): o período de internação costuma ser de forte turbulência, interna e externa — no organismo e nas relações interpessoais. O crack é uma substância de ação rápida, e a suspensão do efeito produz imenso desconforto. Interromper o uso representa um esforço enorme para o dependente. O funcionamento do cérebro se torna caótico, e o paciente, muitas vezes, precisa ser estabilizado com tranquilizantes. Há traumas no relacionamento com familiares e amigos, que se intensificam nesta fase. O risco de recaída é grande, e por isso o comprometimento com o tratamento é fundamental.

— Segunda (seis a oito meses): alternam-se estados de ânimo, e o dependente pode ficar depressivo, ansioso, desesperançoso. A capacidade de tolerar frustrações é pequena. Além dos medicamentos, o suporte oferecido por grupos de apoio e pela família é essencial. O paciente deve retomar relacionamentos e compromissos sociais e legais (nos casos em que o vício acarretou problemas com a Justiça, por exemplo). O perigo de retomar o consumo ainda é bastante grande.

— Terceira: há maior estabilização do quadro. O paciente está melhor ancorado: trabalha, estabelece ou retoma relações afetivas, volta a merecer a confiança dos familiares e intensifica também a autoconfiança. Começa a colher resultados do período vivido em abstinência, e há motivação para seguir em frente.

— Quarta: é a manutenção. O dependente segue em acompanhamento, frequentando reuniões de apoio, e também se monitora, cuidando para não repetir condutas da época da ativa.

Fonte: Flavio Pechansky, diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe do Serviço de Psiquiatria de Adição do HCPA

FATORES ESSENCIAIS

Há personagens e condições importantes durante a internação e após a alta

— Presença da família, oferecendo amparo e estabelecendo regras claras de convivência.

— Qualificação e motivação da equipe profissional. A motivação do paciente e dos demais dependentes em tratamento com quem ele tem contato também é determinante.

— Participação em grupos de apoio: o acompanhamento psicológico e uma atuante rede social (amigos, colegas, empregadores) também fortalecem o dependente químico em remissão.

Fontes: José Edson Knob, psicólogo e especialista em dependência química, e Pedro Eugênio Ferreira, psiquiatra, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da PUCRS e coordenador do Ambulatório de Dependências Químicas do Hospital São Lucas

Fonte: Larissa Roso | ZERO HORA

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