terça-feira, 28 de maio de 2013

Guerra Silenciosa: Dor pela perda se soma à impunidade

Mortes no trânsito levam familiares a uma saga em busca de justiça

   Raquel e Bárbara ficaram órfãs de pai e mãe em 2012 (Crédito: André Ávila)

"Ainda é difícil de acreditar no que aconteceu. Parece que não é verdade que o teu pai e a tua mãe não vão mais estar ali por causa da imprudência de outra pessoa. Agora só buscamos justiça." Esse é o desabafo de Bárbara, 23 anos, em relação à morte dos pais Normélia, 50, e Milton Fior, 53. Eles perderam a vida por volta das 22h de 6 de março de 2012, quando retornavam para casa pela ERS 223, no trevo de acesso secundário a Ibirubá, onde moravam. A interrupção tão brusca da vida desse casal e de outras milhares de pessoas, assim como a busca de seus familiares por justiça, é o tema abordado hoje na série de reportagens Guerra Silenciosa, que será publicada até amanhã no Correio do Povo.

As vidas de Milton e Normélia se apagaram quando o carro em que estavam foi atingido por outro veículo, que vinha na contramão a 196,7 km/h, como indicou o laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP). A velocidade era 320% superior à permitida: 60 km/h. As perícias confirmaram ainda que o motorista havia ingerido bebidas alcoólicas. Ele estava dentro do carro com outros três amigos, sendo que um deles morreu no acidente.

Completados 14 meses da tragédia, Bárbara e a irmã Raquel, 28 anos, buscam arduamente justiça e constatam uma triste realidade: a impunidade. "Nada vai fazer a nossa vida voltar ao normal. Ela foi drasticamente alterada. Mas o mínimo que desejamos é que a morte deles não tenha sido em vão. Que possa haver justiça", desabafa Raquel, que é advogada. Ela recorda que, mesmo com a formação profissional e o conhecimento da área, se surpreendeu negativamente com a morosidade dos processos de acidente de trânsito.

"Tudo é uma luta. Conseguir o depoimento formal de uma pessoa que presenciou o acidente, o laudo da perícia e, efetivamente, uma condenação", comenta. Para Bárbara, a impunidade é a parte que mais machuca. "Saber que ele está por aí, sem ser penalizado e nem mesmo arrependido do que fez, é a pior parte", revela Bárbara, que após a morte dos pais passou a morar em Porto Alegre, onde a irmã já residia.

Parte desse sofrimento começou a ser amenizada recentemente com o indiciamento do motorista por duplo homicídio doloso. Atualmente, o processo aguarda a denúncia do Ministério Público, que deverá ser anunciada a qualquer momento. Os réus de acidentes de trânsito, normalmente, são indiciados por homicídio culposo, por imprudência ou imperícia do motorista. A pena máxima é de até quatro anos de prisão. Na prática, é revertida em cestas básicas ou prestação de serviços comunitários. No homicídio doloso (com a intenção de matar), a punição é mais rigorosa: de seis a 20 anos de prisão.

Golpistas tiram proveito de situação

A guerra do trânsito vai além de vítimas e culpados. De maneira irregular, há quem busque tirar proveito dos acidentes. O alerta é feito pelo Sindicato dos Corretores de Seguros do RS. Segundo o vice-presidente da entidade, Sérgio Petzhold, em função da falta de esclarecimento, muitas pessoas caem no golpe do Seguro do Trânsito, o DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre). Esclarece que qualquer pessoa que se envolveu num acidente, mesmo quando não há a identificação do veículo ou do motorista, tem direito ao seguro.

O valor pode chegar a R$ 13,5 mil no caso de morte. Em relação aos que ficam com algum tipo de sequela, o benefício varia de acordo com a gravidade. Petzhold observa que todos podem exigir os direitos sem intermediário. "Infelizmente, ainda existem oportunistas que se aproveitam da falta de informação ou da fragilidade emocional dos envolvidos", afirma. Ele destaca que, em algumas situações, são cobrados até 60% do valor total do benefício. "Basta procurar qualquer representante do mercado de seguros e solicitar orientação, sem pagar por isso."

2,7 mil ações se referem a acidentes

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem atualmente 2.738 processos ativos relacionados a acidentes de trânsito. As ações estão em tramitação na 11 e na 12 Câmara Cível esperando julgamento. Apenas nos quatro primeiros meses deste ano foram julgados 838 processos e, ao longo do ano passado, 2.936. Esses dados dão a dimensão de uma batalha silenciosa e quase invisível que começa após os acidentes de trânsito. Por trás dos números dos processos estão, na maioria dos casos, familiares em busca de justiça.

Para alguns advogados, a criminalização pelos acidentes procura evitar que mais vidas sejam perdidas ou mutiladas pelo trânsito. Um dos casos mais marcantes foi vivenciado pela advogada gaúcha Jussara Gauto, que há mais de 40 anos atua na área criminal. Ela era advogada no processo que conquistou o primeiro indiciamento de um motorista por homicídio doloso (quando há intenção de matar) ou dolo eventual (quando assume o risco). 'Uma vida não pode ser trocada por cesta básica (que era a pena aplicada quando a condenação era por homicídio culposo).'
 

O caso foi de um motorista que, ao dirigir em alta velocidade, entrou no sentido oposto da via, colidindo frontalmente com outro veículo e matando duas pessoas, uma delas uma menina de 11 anos - filha da prima da advogada. Outra vítima ficou com sequelas. O caso ocorreu em dezembro de 2006 e a primeira vitória veio quase seis anos depois, em agosto de 2012, quando a Justiça condenou o motorista a mais de oito anos de prisão.

A advogada acredita que o maior rigor punição poderá não solucionar a guerra do trânsito, mas tem certeza de que ajudará a ampliar a conscientização. Ressalta que para isso se consolidar é necessário haver também pressão dos advogados.

Essa mudança de concepção tem gerado reflexos positivos, como na própria investigação dos acidentes de trânsito. A delegada Viviane Viegas, do Departamento Estadual de Polícia Judiciária de Trânsito, explica que, em função do aumento na fiscalização, como a Operação Balada Segura, e as mudanças de leis, houve uma ampliação de casos com indiciamento por homicídio doloso. 'Há dois anos os casos de homicídio de trânsito eram considerados por excelência culposos. Mas essa situação está sofrendo alterações', confirma a delegada. Ela ressalta que, em razão das características específicas de cada acidente, não há um período médio para a conclusão das investigações. Em alguns casos, é mais prolongado, especialmente pela necessidade de uma série de perícias e exames complementares.

Cresce tendência de criminalização

O Ministério Público foi pioneiro no Estado a dar uma atenção maior para a criminalização dos acidentes de trânsito. O coordenador do Centro Operacional Criminal do MP, promotor de Justiça Davi Medina, ressalta que esse pensamento começou a aparecer com mais frequência há mais de 10 anos, especialmente pelo crescimento no número de ocorrências de trânsito. "É preciso compreender que raramente os acidentes são efetivamente acidentes. A maior parte resulta da imprudência de motoristas."

Dentro dessa concepção, fica evidenciada a culpa e a necessidade de responsabilizar o autor do acidente. "Ao andar em excesso de velocidade, por exemplo, a pessoa está cometendo um crime e colocando a vida de outras pessoas em risco", diz. Medina recorda que a Justiça está mais sensível na análise dos processos de trânsito e, na maioria dos casos, aceita a denúncia do MP. Para o promotor, o aumento na punição, em especial quando há óbito, é uma maneira de evitar novos casos. Mesmo assim, reconhece que, em função do aumento da frota, o número de acidentes tende a se manter alto.

Fonte: Mauren Xavier / Correio do Povo

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