Animais
negligenciados invadem áreas de conservação do país e causam desequilíbrio
Por Ana Lucia Azevedo
Vira-lata capturada no Jardim Botânico agora
foi colocada para adoção (Foto: Hermes de Paula)
Na Floresta da Tijuca, a onça há mais de século
desapareceu. Lobo nunca existiu. Mas um predador cada vez mais numeroso
extermina a já ameaçada fauna dali. Da paca ao tatu, cutia sim, nenhum animal
silvestre escapa dos cães que vagam pela floresta e caçam em matilhas. O
problema é tão grave que há um estudo em curso no Parque Nacional da Tijuca
(PNT). E não é apenas lá. Biólogos alertam que o cão doméstico se tornou o
principal predador da vida silvestre no Brasil.
Os cães, nem todos sem tutor, invadem unidades de
conservação e matam animais muito maiores do que eles, como antas e veados,
adverte a bióloga Isadora Lessa. A tese de doutorado de Isadora na Universidade
de Brasília (UnB) investiga o impacto dos cães no Parque Nacional da Chapada
dos Veadeiros (Goiás), no Cerrado.
— Na semana passada, por exemplo, dois cachorros
mataram uma anta. O cão é um predador extremamente eficiente e, de longe, o
mais abundante no Brasil. As pessoas temem as onças. Deveriam temer os cães. No
Parque Nacional de Brasília há matilhas com até 20 animais, vários deles
voltaram a um estado selvagem — adverte ela, uma das autoras de um estudo
recém-publicado sobre os danos causados por cães domésticos em áreas protegidas
em todo o país.
FERAIS, ERRANTES, PERIGOSOS
Autor de um dos primeiros estudos sobre cães
domésticos em florestas, Mauro Galetti, professor do Departamento de Ecologia
da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, é categórico sobre os
riscos:
— O cão doméstico é o predador dominante nas áreas
silvestres do Brasil. Ele não só mata diretamente quanto transmite doenças. Na
reserva de Santa Genebra, no estado de São Paulo, os cães extinguiram os
veados. A situação está fora de controle e não há solução à vista. Precisam ser
capturados — salienta Galetti.
A transformação do cão doméstico em selvagem é obra
daquele que se autoproclamou o seu melhor amigo, o ser humano. Matilhas de cães
domésticos caçadores são um fenômeno que ocorre em outras partes do mundo, e
mais um sinal de desequilíbrio do Antropoceno, a era dos homens.
Segundo cientistas, a maioria dos cães domésticos
que caçam em florestas tem tutores. Mas estes os criam soltos. Passam dias a
perambular fora de casa e ninguém se importa se comem, se estão doentes ou por
onde andam. Quase nunca são castrados e se reproduzem livremente. Alguns são
animais abandonados pelos mais variados motivos, verdadeiros cães sem tutor.
Alguns voltam a um estado que a ciência chama de feral. Isolados dos humanos,
se reproduzem na floresta e adotam um comportamento totalmente selvagem. A
maioria, porém, é o que os pesquisadores chamam de semisselvagem. Eles não
temem o homem e, por isso mesmo, são os mais agressivos. Podem ir para a casa
de um tutor buscar abrigo e usar a floresta como área de caça. Cães são ótimos
caçadores. É só lembrar que o lobo e ele são a mesma espécie: Canis lupus e
Canis lupus familiaris, respectivamente. Além disso, como o homem, se adaptam a
qualquer ambiente e são resistentes.
— O problema é gravíssimo e ignorado. O cão é um
hiperpredador porque tem uma população muito maior do que aquela que o meio
ambiente pode suportar. Ele mata não apenas para se alimentar, mas por
instinto. Mata e não come. Na Ilha Grande vimos um cão de coleira matar um tatu
e não comer. A natureza não suporta uma pressão desse tipo. A culpa, claro, não
é dos cachorros, mas de seus donos — afirma a professora do Departamento de
Ecologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Helena Bergallo,
uma das orientadoras da tese de Isadora e coordenadora do Projeto de Pesquisa
em Biodiversidade da Mata Atlântica.
No estudo que ela e Isadora fizeram com outros
cientistas, viram que há registro de predação por cães em 31 parques nacionais
de Norte a Sul do Brasil. E a Floresta da Tijuca se tornou um microcosmo do que
acontece no país. Mesmo nas trilhas mais ermas e de acesso mais difícil há cães
caçando. Alguns têm sido flagrados pelo trabalho pioneiro da coordenadora de
pesquisa do PNT, Katyucha Von Kossel de Andrade Silva, cuja tese de mestrado
investiga o impacto dos cães nos animais do parque. Ela espalhou dezenas de
armadilhas fotográficas pelo Setor Floresta. E não para de flagrar cães.
— Alguns são ferais. Mas a maioria é errante, tem
dono. Eles formam matilhas e são uma tragédia para os mamíferos silvestres,
principalmente pacas, tatus, cotias, mas pegam até macacos. E afugentam os
cachorros do mato, que são tímidos e de outra espécie. Vimos cães mesmo em
lugares quase inalcançáveis da mata. Só não pudemos colocar armadilhas em zonas
mais próximas à Grajaú-Jacarepaguá, mas ali o risco eram bandidos, outro tipo
de perigo — explica ela.
Katyucha reclama que moradores do Alto da Boa Vista
e do Horto deixam seus cachorros soltos. Lamenta também os animais abandonados.
— O cachorro adoece, fica velho ou simplesmente
enche a paciência do tutor e este o abandona. É uma covardia e um crime. Há
gente cruel que deixa os cães à própria sorte. Já vimos uma matilha que era
formada por um vira-lata pequeno, um médio e um grande cego e velho — conta.
DOENÇAS PARA HOMENS E ANIMAIS
O abandono foi o destino da vira-latinha de cerca
de 2 anos capturada semana passada perto de um lago do Jardim Botânico do Rio
de Janeiro.
— Soa surreal, mas a predação por cães é a
principal causa de morte dos mamíferos silvestres do Jardim Botânico. Eles
chegam pelas trilhas ou são abandonados no Horto e acabam aqui. Já enfrentamos
problemas com matilhas, uma delas liderada por um poodle. Aqui são uma ameaça.
Já mataram tapitis (coelhos silvestres), esquilos, tatus, pacas. Esta foi
capturada antes de causar mais estragos. É mansa com pessoas, mas não com
animais. O abandono de cães é um ato profundamente cruel e irresponsável —
lamenta a coordenadora do Projeto de Conservação da Fauna do Jardim, Gabriela
Heliodoro, cujo mestrado investiga as doenças transmitidas pelos cães
domésticos à fauna da Mata Atlântica.
Segundo ela, os cães ferais e semisselvagens se
tornam transmissores de raiva, cinomose, leishmaniose, parvovirose,
toxoplasmose entre outras doenças.
— Como não são vacinados, eles se tornam um
reservatório de raiva — alerta ela.
Site
OLHAR ANIMAL
Nota do Olhar Animal: A predação não é boa para ninguém. Para o animal
caçado, por motivos óbvios. Para o predador, ele mesmo muitas vezes acaba sendo
vítima de sua ação. O fato dos predadores serem cães não muda isso. E pacas,
tatus, cotias e macacos não querem ser predados por cães ou por quaisquer
outros animais. Há o que se fazer sobre isso? Discutir o assunto é um bom
começo.
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