Se um dia alguém resolver erigir um monumento em praça pública às boas
intenções frustradas do pensamento científico, podia ser uma estátua monumental
de um prato cheio de pó branco. Assim homenagearíamos de uma só vez três
enganos cientificistas: a farinha de trigo refinada, o açúcar branco e a
cocaína. Três pós acéticos e quase idênticos, três frutos do pensamento que
dominou o último século e meio: o reducionismo científico. Três matadores de
gente
Não é por acaso que os três são tão parecidos. Todos eles são o resultado
de um processo de “refino” de uma planta – trigo, cana e coca. Refino! Soa
quase como ironia usar essa palavra chique para definir um processo que, em
termos mais precisos, deveria chamar-se “linchamento vegetal” ou algo assim.
Basicamente se submete a planta a todos os tipos de maus-tratos imagináveis:
esmagamento entre dois cilindros de aço, fogo, cortes de navalha, ataques com
ácido. Até que tenha-se destruído ou separado toda a planta menos a sua
“essência”. No caso do trigo e a da cana, o carboidrato puro, pura energia. No
caso da coca, algo bem diferente, mas que parece igual. Não a energia que move
as coisas do carboidrato, mas a sensação de energia ilimitada, injetada
diretamente nas células do cérebro.
Começou-se a refinar trigo, cana e coca mais ou menos na mesma época, na
segunda metade do século 19, com mais intensidade por volta de 1870. No livro
(que recomendo muitíssimo) “Em Defesa da Comida”, o jornalista Michael Pollan
conta como a tal “cultura ocidental” adorou a novidade. Os cientistas ficaram
em êxtase, porque acreditavam que o modo de compreender o universo é dividi-lo
em pequenos pedacinhos e estudar um pedacinho de cada vez (esse é o tal
reducionismo científico). Nada melhor para eles, então, do que estudar apenas o
que importa nas plantas, e não aquele lixo inútil – fibras, minerais, vitaminas
e outras sujeiras. Os capitalistas industriais também curtiram de montão. Um pó
refinado é super lucrativo, muito fácil de produzir em quantidades imensas,
praticamente não estraga, pode ser transportado a longuíssimas distâncias. A
indústria de junk food floresceu e sua grana financiou as pesquisas dos
cientistas, que, animadíssimos, queriam mais.
Sabe por que esses pós refinados não estragam? Porque praticamente não
têm nutrientes. As bactérias e insetos não se interessam pelo que não tem
nutriente.
Os três tem efeito parecido na gente. Eles nos jogam no céu com uma
descarga de energia e, minutos depois, nos deixam despencar. Aí a gente quer
mais. Como eles foram separados das partes mais duras das plantas – as fibras –
nosso corpo os absorve como um ralo, de uma vez só. Seu efeito eletrificante
manda sinais para o organismo inteiro, o metabolismo se acelera. Aí o
efeito vai embora de repente. E o corpo é pego no contrapé.
Cocaína, farinha e açúcar eram O Bem no final do século 19. Eram conquistas da engenhosidade humana.
Eram a prova viva de que a ciência ainda iria conquistar tudo, de que o homem é
maior do que a natureza, de que o progresso é inevitável e lindo. Cocaína era
“o elixir da vida”. Nas palavras publicadas numa revista do século 19, “um
substituto para a comida, para que as pessoas possam eventualmente passar um
mês sem comer.” Farinha e açúcar davam margem a fantasias de ficção científica,
como a pílula que dispensaria o humano do ato animal e inferior de comer.
O equívoco da cocaína ficou demonstrado mais cedo, já nas primeiras
décadas do século 20. De medicamento patenteado pela Bayer, virou “droga”,
proibida, enquanto exterminava uma população de viciados. A proibição
amplificou seus males, transformando-a de algo que afeta alguns em algo que
machuca o planeta inteiro, movendo a indústria do tráfico, que abastece quase
todo o crime organizado e o terrorismo do globo.
Levaria muito tempo até que os outros dois comparsas fossem
desmascarados. Até os anos 1990, farinha e açúcar ainda eram “O Bem”, enquanto “O Mal” era a gordura, o colesterol. Os médicos recomendavam que se
substituisse gorduras por carboidratos e o mundo ocidental se entupiu de
farinha e açúcar. Começou ali uma epidemia de diabetes tipo 2, causada pelas
pancadas repentinas que farinhas e açúcar dão no nosso organismo. Começou
também uma epidemia de obesidade. Sem falar que revelou-se que açúcar e farinha
estão envolvidos no complô para expulsar frutas, folhas e legumes dos nossos
pratos, o que está exterminando gente com câncer e doenças cardíacas. Como
câncer e coração são as maiores causas de morte do mundo urbanizado, chega-se à
constatação dolorosa: farinha e açúcar são na verdade muito mais letais do que
cocaína. É que cocaína viciou poucos, mas açúcar e farinha viciaram quase todo
mundo.
Agora os três pós brancos são “O Mal”. A humanidade está mobilizada para exterminá-los. Há até uma nova dieta
vendendo toneladas de livros pela qual corta-se todos os carboidratos da dieta
e come-se apenas gordura.
Em 1870, caímos na ilusão de que era possível “refinar” plantas até
extrair delas o bem absoluto, apenas para nos convencermos décadas depois de
que tínhamos criado o mal absoluto. Mas será que o problema não é essa mania
humana de separar as coisas entre “O Bem” e “O Mal” em vez de
entender que o mundo é mais complexo que isso e que há bem e mal em cada coisa?
Trigo, cana e coca, se mastigados inteiros – integrais – são nutritivos e
inofensivos e protegem contra doenças crônicas. Precisamos parar de tentar
“refinar” a natureza e entender que ela é melhor integral.
Por Denis Russo Burgierman
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