Órfão de
pai e filho de mãe alcoólatra, ele precisou lutar contra a pobreza e o
preconceito
Cícero Pereira Batista hoje ostenta com orgulho
o certificado de
conclusão do curso de medicina ao lado dos livros e vinis
que
encontrou no lixo (Paulo Mondego/R7)
Ele tinha tudo para dar errado. Mas decidiu contrariar os
paradigmas de um garoto pobre, negro e criado em meio à violência, drogas e
alcoolismo. Cícero Pereira Batista tem 33 anos que podem ser triplicados pelas
experiências que viveu. Após tirar literalmente do lixo sua esperança de uma
vida melhor, hoje comemora a conquista do diploma de médico conquistado graças
à obstinação, como ele mesmo define.
Foi na quadra 20 da QNL, mais conhecida como Chaparral e pelos
altos índices de violência, que o então menino Cícero cresceu. Na época ainda
era chamado de Juca pelos sete dos 20 irmão que conseguiram sobreviver à
pobreza.
Quando tinha apenas três anos, o pai morreu e o futuro que já
seria difícil se tornou pior. A mãe de Cícero encontrou no álcool a fuga para
as mazelas da periferia que tomaram conta de sua casa. O irmão mais velho
passou a traficar e usar drogas. Momentos que marcaram a mente de Juca.
— Meu pai, antes de morrer, pediu ao meu irmão mais velho que
cuidasse de nossa família, mas ele não suportou. Ele se envolveu com as drogas
e passou a usá-las dentro de casa. Isso aqui era cheio de gente drogada. Eu via
meu irmão cheirando cocaína ao meu lado.
Em meio ao caos, Cícero buscou meios para sua própria
subsistência. E o foi buscar no lixo o que comer. Entre lágrimas, ele lembra o
que precisava fazer para comer e ajudar a irmã mais nova.
— Eu tinha que chafurdar no lixo para encontrar comida. E muitas
vezes encontrava pedaço de carne podre, iogurte vencido, resto de comida que
ninguém queria. Era aquilo que me alimentava. E no meio do lixo surgiu a minha
oportunidade de uma vida melhor.
No meio aos restos, Cícero encontrava livros e discos de vinis
velhos. Os livros passaram a ser o refúgio de tanta desgraça. Os vinis, a
trilha de uma trajetória que ele jamais imaginava percorrer.
— Eu lia tudo que encontrava pela frente. Eram livros velhos
manchados pelo chorume de lixeiras de supermercados, mas era a única coisa que
eu tinha. Os vinis eu escutava na casa de um vizinho. Beethoven e Bach foram
minhas inspirações.
A irmã de Cícero o matriculou na escola pública próxima a sua
casa. Só conseguiu chegar ao ensino técnico graças à ajuda de professores e
amigos. Decidiu fazer o curso de técnico em enfermagem que passou em segundo
lugar na seleção feita pelo Cespe, banca que integra a UnB (Universidade de
Brasília).
Cícero
aproveitava para estudar nos livros que encontrava em paradas
de ônibus,
deixados por um projeto de social (Paulo Mondego/R7)
Ao concluir o curso logo veio a primeira vitória. Foi aprovado no
concurso da Secretaria de Saúde para técnico em enfermagem e passou a trabalhar
no HRT (Hospital Regional de Taguatinga). Mas ainda era pouco para quem estava
acostumado com tanta dificuldade. Então ele buscou o que já procurava desde a
infância. Passou para o vestibular de medicina em uma faculdade particular de
Araguari.
Cícero estudava de segunda a sexta-feira e aos fins de semana
tirava plantão de 40 horas no HRT. Não tinha outro jeito. Acabava perdendo as
aulas da manhã de segunda, mas tinha a ajuda dos professores. O salário que
recebia ia todo para o pagamento da mensalidade. Sobrevivia de doação e da
própria determinação.
Como a rotina estava muito difícil, Cícero decidiu fazer o Enem e
tirou nota suficiente para lhe garantir uma bolsa de estudos em uma faculdade
particular do DF. Passou a estudar medicina no Gama onde enfrentou o
preconceito racial e a rotina de estudos. Mas para quem trazia cicatrizes da
infância, ser vítima de preconceito era apenas mais uma etapa a ser vencida.
— Eu nunca pensei em desistir. Meus companheiros sempre foram os
livros e a música clássica me dava leveza de espírito para seguir em frente. Eu
pensava que se Beethoven se tornou um dos grandes compositores da história eu
também poderia me tornar um bom médico.
E deu certo. No dia 6 de junho deste ano, o menino Juca se tornou
o Dr. Cícero Batista. Na formatura foi ovacionado por professores, colegas e os
pais daqueles que costumavam discriminá-lo por ser negro e pobre.
Hoje faz questão de contar a própria história no lugar onde tudo
começou. A casa ainda sem nenhum conforto na QNL 20 é o lugar que abriga a mãe
e os livros achados no lixo e nas paradas de ônibus. Os planos agora são
outros, mas sempre focados em dias melhores.
— Eu quero justificar a confiança que meus professores e meus
amigos depositaram em mim. Por isso estou focado em me tornar um bom médico,
dar uma vida melhor para minha mãe e depois me especializar em psiquiatria ou
pediatria. Mas ainda penso estudar Direito, quem sabe.
Fonte:
Paulo Mondego, do R7