Entenda por que a The Economist e o mundo se
renderam à vanguarda do país
Foto: Félix Zucco / Agência RBS
O Uruguai quebrou mais
um entre tantos paradigmas no ano que termina: sob um governo de esquerda, foi
escolhido “país do ano” por uma publicação marcadamente liberal – a britânica
The Economist.
Tal distinção foi
concedida pela primeira vez na história de 170 anos da revista, acostumada a
recomendar receituários austeros às nações de todo o mundo. Curiosamente, tais
prescrições resumem tudo o que o presidente uruguaio José Mujica,
ex-guerrilheiro tupamaro, rejeitava e rejeita ainda hoje.
Mais curioso ainda: os
motivos que levaram a revista a eleger o Uruguai poderiam descrever em um tuíte
o próprio Mujica: “Modesto, porém ousado, liberal e amante da diversão”. Fica
claro que o Uruguai ganhou o mundo.
Poucas semanas atrás,
o país aprovou um projeto de lei que regula a produção e venda de maconha.
Antes, já havia dado sinal verde ao casamento gay e ao aborto.
O que motivou a
revista foi, sobretudo, a Cannabis sativa. Diz a Economist: “É uma mudança tão
sensível, que joga para fora os bandidos e permite que as autoridades se
concentrem em crimes mais graves, que nenhum outro país a fez”. Ao lembrar o
casamento gay, a revista acrescenta: a medida “aumentou a quantia mundial de
felicidade humana sem custo financeiro”. Simples assim.
Quanto a Mujica, a
definição da publicação é de que é um político de franqueza “incomum”.
O título informal é o
apogeu de um ano no qual o Uruguai esteve em evidência. Em junho, o mundo se
surpreendeu com o encontro entre o papa Francisco e Mujica, no Vaticano. Depois
da reunião, foi dito que o Papa ficou “muito feliz por ter se reunido com um
homem sábio”.
Nada mais apropriado
que um papa jesuíta de prédica franciscana se sinta à vontade com Mujica. O
presidente uruguaio é tido como o chefe de Estado mais pobre da América Latina.
Mantém o mesmo patrimônio que tinha quando chegou ao poder, em 2010: a chácara
distante 20 minutos do centro de Montevidéu e um fusca modelo 1987. Mujica doa
90% do salário mensal de US$ 12,5 mil a programas sociais. Há pouco, disse que
adotará “30 ou 40” crianças de baixa renda ao fim de seu mandato.
– Mujica se tornou uma
marca e sabe explorá-la. Apresenta-se como a antítese do político tradicional
rodeado de luxos, protocolo e guarda-costas, ainda que tenha jogo de cintura
para adaptar sua linguagem – analisa Gonzalo Terra, subeditor da seção nacional
do jornal uruguaio El País, que diz que, enfim, a imagem de Mujica se impôs:
– Durante a campanha
eleitoral, esse estilo gerava dúvidas, e muitos se perguntavam como
representaria o país no âmbito internacional.
Passados três anos,
parece ter ganho essa batalha, pois fascina a mídia do mundo inteiro. Seu
estilo não surpreende no Uruguai, porque sempre foi assim, o que não o salva de
duras críticas internas por problemas de gestão.
Simpatia pelo discurso
libertário...
Em setembro, José
Mujica proferiu um discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas (ONU) em que provavelmente pavimentou de vez o caminho para o
reconhecimento internacional.
As palavras de
profundo teor humanitário tomaram conta das redes sociais. Foi como um hino
hippie em pleno século 21. Mujica se pronunciou favoravelmente à ciência.
Condenou as guerras. Ofereceu-se para intermediar as negociações entre as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo da Colômbia a fim
de obter a paz buscada nos intermináveis diálogos travados em Havana.
– Ele é um homem que
tem visão social e que preconiza a liberdade das pessoas. Merece receber as
honrarias que tem recebido – diz Julio Rey, ativista pela liberação da maconha.
– O Uruguai se
consagra como um país onde se reconhece um olhar generoso para uma sociedade
heterogênea. Não há uma leitura homogeneizante – concorda a advogada Michelle
Suárez, integrante do grupo Ovelhas Negras, ONG de defesa dos direitos da
comunidade gay no Uruguai.
Na ONU, Mujica
enfatizou a expressão “ninguém é melhor do que ninguém” e disse frases como
“Olá a todos, venho do Sul, esquina com Atlântico e o Prata”, para acrescentar:
“Nossa época continua dirigida pela acumulação e pelo mercado. Prometemos uma
vida de resíduos e desperdícios”. Depois, emendou: “Minha história pessoal é a
de um garoto, porque algum dia fui um garoto, que como outros quis mudar sua
época, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes”.
... e críticas a
medidas temidas radicais
José Mujica, o homem
que conduziu seu país a ser modelo para o mundo na avaliação da The Economist,
também é motivo de críticas.
O senador Alfredo
Solari (do opositor Partido Colorado) se vale de estudos científicos para dizer
que a maconha causa danos neurológicos. E duvida da capacidade de fiscalização.
– Corremos o sério
risco de nos tornar um foco regional para o turismo da Cannabis sativa, como
teme a região, com toda razão. Além disso, a maconha prejudica os seres humanos
– diz o senador, médico de formação.
O senador do Partido
Nacional Jorge Larrañaga, ex-candidato presidencial, diz que legalizar a
maconha sob o argumento de que a guerra às drogas falhou é uma forma de
rendição.
– O governo vai vender
um produto melhor e mais barato. É claro que isso vai fazer aumentar o consumo.
Transformaremos o país em um centro de turismo da droga.
Também há
ginecologistas que se rebelaram contra a legalização do aborto. Como?
Negando-se a fazer o procedimento.
A ginecologista María
Luján Chiesa reclama:
– A medicina existe
para curar e salvar vidas. Sabemos muito bem que um aborto é um assassinato.
Também ginecologista,
Ricardo Pou Ferrari, um dos ativistas contra o aborto, concorda:
– Nem a Sociedade de
Ginecologia nem o Colégio Médico foram consultados. Foi uma legislação imposta
de cima para baixo e que vai contra os princípios éticos mais elementares da
nossa profissão.
O governo, por meio do
ministro da Saúde, Leonel Briozzo, defende a lei dizendo que, ao permitir o
aborto nas 12 primeiras semanas de gestação, quer preservar a vida das
mulheres.
O que faz o país digno
de nota
Começou com a
instituição do divórcio no país, em 1907, décadas antes dos vizinhos de América
Latina. Continuou com a regulamentação da jornada de oito horas, sete anos
depois, com o direito de voto às mulheres, em 1932, até uma série de recentes
medidas modernizadoras. O motivo da fascinação do mundo pelo Uruguai parece ser
a vanguarda e a reinvenção constantes no país.
Casamento homoafetivo
O parlamento abriu as
portas para a adoção de crianças por casais gays em 2009. Em 2010, o governo
decretou o fim da restrição à entrada de homossexuais nas Forças Armadas. O
Uruguai aprovou em maio o casamento homossexual, se tornando o segundo país
latino-americano a tornar lei a união entre pessoas do mesmo gênero, depois da
Argentina.
A questão do aborto
O aborto foi
descriminalizado em outubro de 2012, mas não sem certa dificuldade. A
legalização da prática foi aprovada pelo parlamento, em 2010, mas o então
presidente, Tabaré Vázquez, que é médico, alegou questões éticas para vetar a
medida. Em 2012, José Mujica apresentou novo projeto de lei, que foi aprovado e
confirmado.
Regulamentação da
maconha
Em novembro, foi aprovada
a lei inédita que confere ao Estado o papel de regulador da comercialização e
da produção de maconha no país. A legislação tem como intuito preservar o
usuário da violência do narcotráfico e acabar com o crime organizado decorrente
da indústria da droga.
O homem no topo
O comandante José
Mujica, segundo a The Economist, é admiravelmente modesto. “Com uma franqueza
atípica aos políticos, ele se referiu à nova lei (da maconha) como um
experimento. Ele mora numa chácara humilde, vai ao trabalho dirigindo um Fusca
e viaja de classe econômica”, diz a revista.
Fonte:
Léo Gerchmann | ZERO HORA
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