Com apenas uma porta para entrada e saída, fachada da boate teve buracos abertos para facilitar o resgate de vítimas / Foto: Félix Zucco / Agencia RBS
Não dispor de uma saída de emergência
adicional era o primeiro item de várias normas básicas de segurança contra
incêndios desrespeitadas pela boate Kiss.
Para assegurar o curso das investigações
sobre o incidente que resultou na morte de mais de 230 pessoas, a Polícia Civil
cumpriu, ontem, mandados de prisão temporária dos dois proprietários da casa
noturna e de dois músicos da banda Gurizada Fandangueira.
Além das causas da tragédia, a polícia
terá de apurar porque autoridades diminuem a importância de problemas
estruturais considerados graves por especialistas.
A Kiss tinha apenas uma porta, que
funcionava como entrada e saída. O Corpo de Bombeiros considera desnecessária a
existência de uma segunda saída, mas a porta de emergência é considerada
obrigatória pela Norma 9.077 da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT), que baliza as legislações contra incêndio de Santa Maria e do Estado.
José Carlos Tomina lidera o Comitê Brasileiro de Segurança contra Incêndio —
grupo que, na ABNT, elaborou as 64 normas de prevenção e combate a incêndios
vigentes no país.
— A norma em questão não prevê nenhuma
possibilidade daquela casa noturna estar funcionando com apenas uma saída, não
importa o tamanho da porta — afirmou.
É necessário, também, que a saída
adicional fique do lado oposto ao principal. Para ele, a casa falhava em itens
básicos de segurança, como iluminação de emergência.
Legislação exige ao
menos duas saídas
A ausência de saídas de emergência para
uma evacuação rápida e a falta de comunicação entre os funcionários da casa
foram erros fatais, na avaliação do coordenador do Grupo de Análise de Risco
Tecnológico e Ambiental da Coppe/UFRJ, Moacyr Duarte:
— A cadeia de responsabilidades nessa
tragédia é enorme. Qualquer plano de emergência prevê a evacuação de um local
em menos de cinco minutos.
Mesmo antiga, a legislação atual contempla
os pontos básicos de segurança, diz. Para o especialista, a tragédia não foi uma
fatalidade, mas uma sequência de erros banais:
— A configuração da boate é inadmissível
em qualquer lugar do mundo. Nem janelas tinha. Qualquer inspeção básica de
bombeiro não daria autorização para funcionar.
Leia Mais:
O fato de as saídas de emergência não
atenderem a requisitos mínimos tornou impossível que todos saíssem com vida
durante a correria, considera o engenheiro de segurança do trabalho Rogério
Bueno de Paiva, professor da Unisinos, que destaca a falha dos extintores e a
má sinalização como fatores importantes.
Já o professor Luiz Carlos Pinto da Silva
Filho, diretor do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas em Desastres da
UFRGS, sugere simplificar a legislação para aumentar a fiscalização dos
estabelecimentos.
— Não podemos fechar os olhos para o
risco. Para fazer jus à memória dessas vítimas, precisamos fiscalizar,
denunciar — disse.
O QUE NÃO ATENDIA ÀS
REGRAS NA KISS
Sinalização e iluminação de emergência
- A casa noturna deveria contar com
iluminação de emergência com alimentação independente à rede elétrica, para
permitir que as pessoas conseguissem se dirigir às saídas. Informações de
sobreviventes indicam que, se existia o sistema, ele não funcionou. Os textos e
símbolos de sinalização são obrigatórios e devem ter, de preferência, cor
branca sobre fundo verde-amarelado, para melhor visualização através da fumaça,
admitindo-se o uso da cor vermelha. Vítimas relatam que tiveram dificuldade de
se orientar, o que pode indicar a ausência ou deficiência no sistema de
sinalização.
Corredores de escape
- Nenhum corredor de acesso às saídas pode
ter largura inferior a 1m10cm. A largura é calculada para permitir que em cada
corredor seja possível a passagem de duas filas de pessoas, cada uma ocupando
55 centímetros de espaço. Nessas condições, conforme a norma, 60 a 100 pessoas
poderiam sair do local a cada minuto. Se a boate tivesse seis metros de portas,
seria possível a saída de até 600 pessoas por minuto. A evacuação do local,
portanto, poderia ser feita em menos de três minutos.
Sistema de alarmes
- Em qualquer emergência em local público
deve ser acionado um sistema de alarme. O aviso deve ser coordenado, com
comunicação de rádio entre os seguranças. Na boate Kiss, enquanto um segurança
combatia o foco do fogo com um extintor de incêndio, outro funcionário da mesma
equipe barrava as pessoas na saída. A comunicação entre a equipe de segurança é
fundamental em casos de emergência.
Revestimento acústico
- O artigo 17 da lei municipal de Santa
Maria veda o uso de material "de fácil combustão e/ou que desprenda gases
tóxicos em caso de incêndio" em revestimento de casas noturnas.
Autoridades que estiveram no interior da Kiss afirmam que o revestimento
acústico não era adequado e foi todo consumido pelo fogo. A Polícia Civil terá
de apurar como o uso do material não foi questionado pelos responsáveis pela
vistoria.
Portas de saída
- A boate Kiss deveria ter pelo menos duas
saídas distintas. Considerando a área do estabelecimento, 615m², a soma da
largura das portas não poderia ser menor do que seis metros — ou seja, duas
portas de três metros. A boate, no entanto, tem só uma porta, para entrada e
saída, que, totalmente aberta, chega a apenas três metros. Só estabelecimentos
enquadrados como bar podem ter uma porta — mesmo assim, pode-se exigir mais de
um acesso em casos de bares com mais de um andar ou de grande extensão.
OAB COBRA
"RESPONSABILIZAÇÃO AMPLA"
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS)
divulgou nota ontem cobrando "responsabilização ampla" dos culpados
na tragédia na boate Kiss.
— É impossível dissociar a
responsabilidade do ocorrido a uma falha do poder público. A investigação e a
eventual responsabilização dos culpados precisa ser ampla — disse o presidente
da OAB/RS, Marcelo Bertoluci.
A boate Kiss operava com licença fornecida
pelo Corpo de Bombeiros vencida desde agosto, além das falhas graves listadas
por especialistas (acima).
— É uma calamidade que a casa estivesse em
funcionamento — complementou o presidente da entidade.
Ontem, Bertoluci nomeou o advogado Eduardo
Jobim, conselheiro da OAB em Santa Maria, para acompanhar o inquérito.
Fonte:
Adriana Irion, Francisco Amorim e Joana Colussi |
ZERO HORA
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