Anselmo Klein compartilha sua
experiência em uma das profissões que inspirou e inspira muitos poetas e
cantores gaúchos
Foto:
Márcia Sarmento |
Não é à toa que a
música Balseiros do Rio Uruguai, composta por Cenair Maicá, reproduz em verso e
melodia, um pouquinho da história de vida desses importantes personagens da
história gaúcha, do Oeste de Santa Catarina e também da Argentina, enfim, de
trabalhadores que tinham na madeira o seu sustento e nas corredeiras do rio
fizeram a sua vida, rodeada de emoção, perigo e muita coragem.
Um senhor
alegre, com boa memória e muitas recordações, hoje residente em Seberi, com a
esposa Iolanda, é uma dessas figuras que carrega consigo lembranças de um tempo
que se foi para nunca mais voltar. Prestes a fazer 89 anos – que serão
completados no dia 8 de setembro –, Anselmo Klein nasceu em Itapiranga (SC), e
desde pequeninho teve forte relação com o rio Uruguai. “Conheço como o meu
bolso”, garante.
Menino arteiro
Filho de
Otto Dietrich e Paulina Cecília Klein, teve 11 irmãos, e já criança precisava
trabalhar para ajudar a família. “O pai trabalhava com serra de estaleiro,
naquele tempo não existia serraria. Desdobrava madeira para fazer ponte, casa
de alvenaria, pois a estrutura era só preenchida com o tijolo, em formato de
enxaimel, típica da etnia alemã. Comecei a trabalhar com três anos, falquejando
cabreúva e angico”.
Seu Klein
disse que sempre foi muito arteiro. Também aos três anos, sofreu um acidente.
Viu uma corrida de saco na escola, mas não podia participar porque era muito
pequeno. Um dia, resolveu brincar em casa e, ao ouvir a movimentação do pai que
acordava, acabou se atrapalhando e caiu num braseiro. Queimou o lado esquerdo
do corpo, onde ainda carrega algumas cicatrizes.
Aos cinco
anos fez a primeira “arte” no rio Uruguai. Queria um barbante que o pai tinha
onde depositava a madeira da serraria, mas para isso, precisava atravessar as
águas de um lado a outro. “Peguei um botezinho do meu irmão, e usei como remo
uma pá de madeira de mexer banha. Levei um susto porque vi um surubi enorme.
Depois mataram aquele bicho com bomba, era assim que ocorria naquela época.
Deus uns 120 quilos”, recorda. Foi com esta idade que salvou duas irmãs que
brincavam no rio e caíram em um ‘buraco’. “Consegui desatar uma canoa, e
cuidei. Quando uma irmã veio para cima, ergueu a mão. Eu enxergava os cabelos
loiros boiando. E então, alcancei o remo para ela segurar”.
Menino trabalhador
Quando o
pai faleceu, tinha sete anos. “Nós éramos muito pobres, minha mãe ficou muito
doente. E eu comecei ‘a enfiar fumo de corda’, para ganhar um dinheirinho”,
conta. Registros relatam que esse trabalho era chamado pelos italianos de
“enfissár tabác”. Utilizavam agulhas de metal, largas, do tamanho de 30 cm mais
ou menos, e cordas extraídas de tronco de árvores, de tronco de bananeira e
taquarão, furavam as folhas no tronco superior e passavam a corda, formando uma
tira de, aproximadamente, 1,50 m.
– Pegava
as folhas de fumo, pegava um barbante de um metro, e com uma agulha, enfiava o
fumo até encher. Era uma enfiada de fumo. Eu tinha insónia, então, foi uma
vantagem porque eu amanhecia e anoitecia enfiando fumo. Uma senhora ficou com
pena de mim, porque uma vez eu adormeci sentado. Eu expliquei o que eu estava
fazendo, e mostrei a agulha que eu fiz, com um arame de balsa, bem mal feita. E
ela comprou uma agulha de aço. Eu tinha sete anos, e eu guardei, tenho até
hoje. É uma relíquia –, revela.
Preparo para ser balseiro
Com oito
anos começou a encontrar Cipó-guaimbê no mato, para vender aos madeireiros que
construíam as balsas. “Subia nas árvores, e o máximo que eu conseguia tirar era
cinco metros. Tudo era por necessidade, para ganhar um dinheiro. Arrastava o
cipó pelo mato afora e levava até a pranchada, onde era embalsada a madeira”. Também
foi arrastador. “A madeira saía do mato de arrasto, com junta de boi até a
água. Ou derrubavam dentro das sangas grandes e deixavam lá. Como era perto da
barranca, esperavam vir uma enxurrada para derrubar dentro do rio maior”.
Depois
começou a ‘montear’ a madeira, que é a procura da madeira apropriada para a
construção da balsa. E bem como no verso da música, “vou levando na minha
balsa, cedro, angico e canjerana”. “A canjerana e a cabriúva precisavam ser
falquejadas, porque não boiam. Então, colocavam dois cedros grossos no meio, e
nas pontas, a cabriúva e a canjerana. O cedro dava apoio. Foi assim até meus 12
anos. Eu era muito metido, daí, nessa idade, virei barqueiro, fazendo a
travessia de um lado para o outro do rio”, lembra.
Sem medo, enfrentando o perigo
O seu
Klein garante que não conheceu medo nesta vida. Quando procurava a madeira no
mato para que depois fosse retirada, disse ter encontrado um felino, em uma
‘dobra de estrada’. “De repente, ele estava há uns oito metros de mim. E não
podia correr, porque ele viria atrás. O bicho subiu em uma madeira e se lambeu.
Eu lembrei como meu pai matava os porcos. Coloquei a mão dentro do meu chapéu
de pano, peguei a faquinha que eu tinha, e gritei: ‘vira bicho’. Acho que ele
se assustou com o grito. E eu escapei de ter que brigar”.
A fama de
que o Salto do Yucumã era muito perigoso para os balseiros é desmistificada por
seu Klein. “O perigo no rio é a Cachoeira da Fortaleza, lembro de centenas de
acidentes. Ela tem um ‘ressojo’ que ninguém pode se precaver. Se eu tivesse
sorte, ia descendo e o ressojo ia engolindo, mas se despejava para o outro
lado, levava a balsa para uma pedreira, onde se espatifava. Houve muitas
mortes. No Salto, a balsa passava em cima”.
Tornou-se
barqueiro com 12 anos, e trabalhou até os 14 anos, já morando na Barra do
Pardo. “Com 14 anos virei lancheiro, aquele que vai com a lancha na frente da
balsa. Eu tinha um caíque com um motorzinho de seis popas. O prático ia na
balsa, bem na frente, cuidando o fio de água, dizendo o melhor trajeto. Tinha o
cabista que ia com o lancheiro e outro na balsa. Dois espiadores para cuidar a
espia. E mais quatro no guatambu. Os remos tinham sete metros de comprimento.
Ah, e o cozinheiro. Eram 12 pessoas”.
Vida de balseiro
A balsa
tinha tamanho variável, geralmente, eram entre 180 e 220 toras de madeira, que
eram chamadas de vigas. “Tinha um comprimento de 180 a 220 metros, por mais ou
menos 15 metros de largura. Havia um vão em que as balsas eram emendadas. Às
vezes, eram feitas apenas duas balsas por ano. Era ruim para atar, tinha outros
que faziam isso, porque precisava ter força. O cipó era atado cruzado. E para
atar, o cara, às vezes, tinha que apoiar no ombro. O lancheiro ia entre 80 a
100 metros na frente da balsa, rebocando. Na barca, a lancha é grudada. Na
balsa é separada, vai à frente, puxando a embarcação para o lado certo do fio
de água. Algumas balsas inham duas ou três lanchas, dependia do poder
aquisitivo dos donos. Os mais ricos colocavam enormes quantidades de madeira e
três ou quatro lanchas para poder guiar. Quanto mais lanchas, mais segurança”.
O destino,
como também conta Cenair Maicá, era São Borja ou Uruguaiana, na fronteira.
“Demorava cerca de seis dias e seis noites para chegar”. A canção também dita a
regra sobre a altura do rio: ‘oba viva, veio a enchente, o Uruguai transbordou,
vai dar serviço pra gente. Vou soltar minha balsa no rio, vou rever maravilhas,
que ninguém descobriu’. Segundo Klein, a altura do rio tinha que estar, no
mínimo, 28 palmos para largar a balsa. “Quanto mais água, melhor. Menos não
podia, porque as madeiras iam enroscando”, acrescenta.
Praticamente
não se dormia em serviço, porque a chance de cometer erro fatal era grande.
“Quando ia largar a balsa, o lancheiro sempre tinha que sair pela esquerda, não
podia descer no mesmo canal da balsa. Largava a balsa, saía rápido e ia pegar a
balsa lá na frente. As madeiras iam boiando, amarradas. A balsa ia puxando.
Alguns dormiam em cima da balsa. Só que o lancheiro, quando dormia, quase
sempre fazia fiasco. Porque o cara, quando fica duas ou três noites sem dormir,
quando dorme e se acorda, fica que nem bêbado até se recuperar. Então comete
erros. Eu tinha essa sorte, de ter insônia e não conseguir dormir”.
Depois da lida
Foi como
balseiro que conheceu a esposa Iolanda Regina Klein, com quem mora hoje em
Seberi. Se conheceram quando ela foi dar aula na localidade de Barra do Pardo.
Casaram-se em 1960, e depois tiveram três filhos, Aladi Aloísio, Eliseu e
Claudete. “Me lembro como se fosse hoje, minha escola era bem no alto. A gente
enxergava todo o Uruguai, bem limpinho, deu muita enchente, tinha muitas
balsas. Vi umas 13 descendo, parecia uma cidade. No meio da balsa tinha a
casinha, onde faziam comida durante a viagem”, detalha Iolanda.
Depois de
realizar 13 viagens de balsa, Klein começou a trabalhar como oleiro, após, como
caminhoneiro. ‘Mascateava’ feijão, especialmente, na fronteira. “Mas sempre
tive o sonho de ser agricultor. Me aposentei como agricultor, aqui já em
Seberi”.
Para
completar a entrevista, Klein fez uma pequena réplica de uma balsa, utilizando
cipó de uma planta que teve o cuidado de trazer consigo, e plantar em sua
propriedade, para não deixar a história se perder. Em seu olhar, ele carrega
lembranças de maravilhas que descobriu.
Publicado por Márcia
Sarmento
Folha do Noroeste
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