Nas fontes oficiais, eles são números. No discurso, viraram invisíveis. Mas como vivem e quem são as pessoas que estão abaixo da linha da pobreza na Capital?
Alessandro (E), Maria, Rosa, Adão e João (frente): família sem renda vive de doações – sobram roupas velhas, falta comidaFoto: Mateus Bruxel / Agencia RBS
Para revelar a
realidade de um país que luta para escapar da miséria, o Diário Gaúcho conviveu
por três semanas com famílias nessa situação. De hoje até sexta-feira,
mostramos o rosto dos invisíveis em páginas no jornal, em webdocumentário e em
galeria de fotos no site.
Espalhadas pelo
Brasil, 700 mil famílias ainda seguem fora dos programas sociais. São 2,5
milhões de pessoas (1,3% da população) consideradas invisíveis pelo Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A elas faltam endereço,
documentos, perspectivas de vida. E sobram mazelas. Cidadãos que teriam direito
a receber, no mínimo, R$ 70 por mês pelo Bolsa Família. Porém, sem informação e
não procuradas por órgãos oficiais, vivem de esmolas de desconhecidos e doações
de parentes, amigos ou vizinhos.
Em Porto Alegre, uma legião de pessoas vive nessa situação, ainda que a Capital seja a primeira no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, entre as 13 maiores cidades do Brasil. Pelo Censo de 2010, 1% das pessoas (13.642) ganharia, por mês, menos de R$ 70.
Em Porto Alegre, uma legião de pessoas vive nessa situação, ainda que a Capital seja a primeira no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, entre as 13 maiores cidades do Brasil. Pelo Censo de 2010, 1% das pessoas (13.642) ganharia, por mês, menos de R$ 70.
São os invisíveis.
Na sexta-feira passada, em discurso na Capital ao lado da presidente Dilma Rousseff, a ministra do MDS, Tereza Campello, reforçou que o maior desafio do governo federal, em parceria com Estados e municípios, é a busca dos que não estão no Cadastro Único.
O mutirão estadual, em Porto Alegre, deve começar em junho. A reportagem do Diário cruzou a Capital durante três semanas e achou os invisíveis. Trilhamos 800km, conversamos com 130 pessoas, fizemos 2 mil fotos e quatro horas de filmagens em 14 vilas de oito bairros. Entre hoje e sexta-feira, diferentes histórias de invisibilidade da Capital estarão estampadas no jornal.
Na sexta-feira passada, em discurso na Capital ao lado da presidente Dilma Rousseff, a ministra do MDS, Tereza Campello, reforçou que o maior desafio do governo federal, em parceria com Estados e municípios, é a busca dos que não estão no Cadastro Único.
O mutirão estadual, em Porto Alegre, deve começar em junho. A reportagem do Diário cruzou a Capital durante três semanas e achou os invisíveis. Trilhamos 800km, conversamos com 130 pessoas, fizemos 2 mil fotos e quatro horas de filmagens em 14 vilas de oito bairros. Entre hoje e sexta-feira, diferentes histórias de invisibilidade da Capital estarão estampadas no jornal.
Eles existem
São os olhos
marejados do ex-jóquei amador Adão Jesus César de César, 58 anos, que expressam
a dor do bolso vazio. Há dez anos, ele, a mulher, Maria Helena, 50 anos, e os
quatro filhos - Rosa Maria, dez, João Pedro, 12, Rodrigo, 16, e Alessandro, 20
anos, vivem num casebre de madeira construído para ser um estábulo na Vila
Chácara do Banco, no Bairro Restinga, Sul da Capital. O local mais espaçoso
fica para o cavalo de estimação.
Mesmo morando na
principal avenida da região e vizinha de terreno de um famoso jogador de
futebol, a família de Adão está entre as milhares que o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (MDS) não encontra para incluir no
Cadastro Único (dá acesso ao Bolsa Família).
Fazem parte da faixa
da "extrema pobreza": abaixo de R$ 70 mensais por pessoa. Até março,
Adão ganhava R$ 60 fixos para cuidar de um cavalo (o que dava R$ 0,33 por dia
para cada integrante da família). Dias atrás, o dono do animal despediu Adão:
- Não temos dinheiro
nem pro ônibus para refazer os CPFs. Por isso, não procuramos o Bolsa Família.
Vivemos de doações.
Roupas são a maior
parte dos sacos despejados no terreno deles. A quantidade é tanta, que estão
amontoadas até o teto num canto do quarto onde dorme toda a família. Os
vizinhos costumam doar sapatos. A maioria chega rasgado ou sem sola.
- A gente precisa é
de comida - ressalta Maria, apoiada pelo pequeno João, que usa um chinelo preto
e outro rosa (os que cabem nos pés).
Assim como eles,
Vanessa Oliveira Bandeira, 25 anos, é invisível ao poder público, vivendo numa
peça de compensado na Vila Maria da Conceição, no Bairro Partenon, Zona Leste.
Mãe de Victor, um ano, Bryan, quatro, e de Emily, dez anos, Vanessa, mulher de
olhar lacrimoso, espera o direito ao Bolsa Família desde 2012. Depois de perder
o marido (morto na cadeia), a casa de madeira de cinco cômodos (apodrecida pelo
tempo) e o emprego de industriária, Vanessa lamenta:
- Sem renda, dependo
de parentes. Penso: até quando vou viver assim?
Já a doméstica
desempregada Núbia Nunes Cordeiro, 24 anos, da Vila Elo Perdido, no Bairro
Restinga, até sorri. O marido, pedreiro, vive de bicos e tem trazido cerca de
R$ 400 por mês para o sustento dos filhos Fernanda, sete meses, Gabriel, três
anos, Ketlen, cinco, e Kiane, oito. Os seis dividem uma peça de alvenaria, sem
banheiro. Na cama de solteiro, Núbia se aperta com as quatro crianças. E o
marido? Dorme em um sofá-cama.
- Apenas ganhamos
para a comida. Se eu tivesse o Bolsa Família (na fila há oito meses), poderia
comprar roupas, sem depender de doações. Quero trabalhar, mas não consigo
creche para deixar os filhos - diz Núbia.
No Plano Brasil Sem Miséria, família com renda mensal menor que R$ 70
(R$ 2,30 por dia) por pessoa é taxada de EXTREMAMENTE POBRE. Famílias entre R$
70 e R$ 140 por pessoa, por mês, são as POBRES.
ONU afirma que uma
PESSOA NECESSITA pelo menos, US$ 1,25 (R$ 2,50) por dia PARA VIVER. Isto é R$
75 por mês: R$ 5 acima do mínimo do Bolsa Família.
Na família de Adão,
qualquer quantia vira festa, como quando o filho Alessandro ganha R$ 20
vendendo alvejante de porta em porta.
- Uma vez, vi uma
nota de R$ 50. Mas nunca vimos uma de R$ 100 - relata Alessandro, que estudou
até a sétima série.
Dinheiro também é
luxo para Vanessa e Núbia. Na visita do Diário, sete dias depois do pagamento
do marido, Núbia vibrava por ter R$ 2 para comprar o pão das crianças.
A renda
Segundo o Censo de
2010, cerca de 15 mil domicílios da Capital não tinham renda, incluindo os que
sobreviviam apenas com benefícios. De acordo com o presidente da Fundação de
Assistência Social e Cidadania (Fasc), Kevin Krieger, o órgão se orienta por dados
repassados pelo MDS e pelo Censo:
- Temos de chegar em
áreas novas. Mas as pessoas também podem procurar os 22 Centros de Referência
de Assistência Social (Cras) para se cadastrarem.
O secretário chefe da
Casa Civil do Estado, Carlos Pestana, ressalta a Caravana da Inclusão do RS
Mais Igual:
- É fundamental que
as pessoas se cadastrem. Vou conversar com o prefeito José Fortunatti para que
a Caravana comece em junho ou julho em Porto Alegre.
Para o professor de
Economia da Pobreza da Ufrgs, Flávio Comim, que em 2007 participou de estudo
sobre a pobreza na Capital, o tema vai além:
- Renda é importante,
mas é um indicador imperfeito de bem-estar. Ao mirá-la, deixa-se o problema da
resolução da pobreza para um programa de transferência de renda ou para o próprio
indivíduo. E ele que se vire.
A comida
No caso dos de César,
se virar como pode tem sido a forma de sobrevivência. Em dias considerados de
sorte por Maria Helena, ela recolhe restos de frutas e verduras deixadas por
feirantes num lixão irregular. Dependendo do que achar, alimenta até o cavalo,
dois garnisés, 20 cachorros e sete gatos. Rosa e João vibram ao ver bananas e
melancias. Acabam comendo também.
No dia em que a
reportagem flagrou a família no lixo, João deu uma ideia:
- Dá para colocar no
feijão ou numa sopa!
O pequeno carregava
um repolho, tomates, caquis e duas melancias. Três bananas foram devoradas pelo
caminho. É raro os de César almoçarem juntos. Maria Helena e o mais velho comem
numa obra assistencial da igreja e levam comida para Adão e Rodrigo. Os dois
mais novos aproveitam as refeições na escola.
A saúde e a educação
Atuando há dez anos
em áreas carentes de Porto Alegre, o médico de família Fabiano Barrionuevo diz
que a alimentação inadequada prejudica o desenvolvimento das pessoas:
- Na extrema pobreza,
não se consegue comprar alimentos de qualidade. Catam comida no lixo. Isso
afetará o desenvolvimento neurológico, o crescimento, o ganho de peso. O adulto
desnutrido tem dificuldade de concentração e não vai conseguir trabalhar.
É o que acontece com
a família de Adão. Ninguém completou os estudos ou consegue trabalho fixo. O
filho Rodrigo deixou o colégio antes de aprender a ler. João Pedro está até
hoje na primeira série do ensino fundamental. Rosa cursa a segunda série.
Analfabeta, a mãe decidiu voltar à escola neste ano:
- Quero aprender a
juntar as letras miudinhas.
O governo federal se
baseou em três frentes para chegar ao valor de R$ 70: Objetivos do Milênio da
Organização das Nações Unidas (Onu), Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE e
pesquisas do Banco Mundial e da União Europeia.
O endereço
O que mais chama a
atenção do professor Flávio Comim é a proximidade entre mundos extremos em
Porto Alegre:
- A pobreza pode
estar muito perto das pessoas, mas permanecer invisível. Quando você sai um
pouco da Protásio (Avenida Protásio Alves) e passa pelo Bairro Bom Jesus, nas
partes piores, há locais que nem os vizinhos conhecem. A inexistência de um
endereço já condena os cidadãos a não terem uma certa inserção social ou
direitos de cidadania.
Onde Núbia e outras
300 famílias moram há uma década, ruas e vielas não existem no mapa oficial da
prefeitura. Por ser invasão no Bairro Restinga, o local é identificado por
nomes que se consolidam de boca em boca. Isso impede, por exemplo, a chegada
dos Correios, do saneamento básico e de água encanada. Aliás, Núbia sobe e
desce diariamente 200m em um morro para buscar, num poço condenado, a água que
servirá para todas as tarefas da casa e para o banho.
O banheiro
Por ser considerada
obra cara e com serventia discutível para a família, o banheiro não foi
construído na casa de Núbia. Dois baldes servem para as necessidades
fisiológicas. Outro, é para o banho. Um aquecedor improvisado, com resistência
de chuveiro e dois fios de cobre, esquenta a água. O risco de choque é enorme.
Na rua, duas portas servem de biombo, imitando um box.
- Na hora do meu
banho, aviso os vizinhos para saírem dos fundos. Se visitamos um parente, o
primeiro lugar que as crianças querem ver é o banheiro - revela Núbia.
A situação não é
diferente para Vanessa Bandeira e Adão Jesus César de César. A industriária usa
o banheiro da casa da avó, que mora na mesma rua. À noite, já se acostumaram a
não tê-lo.
Na casa do ex-jóquei,
nem balde existe. É no mato que a família se alivia. A água, inclusive a usada
para beber, vem da casa de vizinhos.
- Uma vez, tivemos
uma patente. Depois, as tábuas apodreceram. O banho é de banheira. Tenho
vontade de ter um banheiro. Uma casa boa. Mas a situação não deixa - queixa-se
Adão.
O bolsa família
Mais informações?
Procure o Cras mais próximo de sua casa.
O programa faz um
cálculo para cada lar, numa somatória de itens. O primeiro é de R$ 70 para cada
família que entra pela primeira vez, não tendo renda (seja casal, ou só pai ou
só mãe ou responsável).
Além disso, cada
filho vale um incremento, limitado a sete cotas - cinco de R$ 32 (de zero a 15
anos) e duas de R$ 38 (16 e 17 anos). Somando estes itens pode-se chegar, no
máximo, a R$ 306.
No exemplo acima,
teríamos um casal e sete filhos. Dividindo-se os R$ 306 por nove (moradores),
resultam R$ 34. Pelo Bolsa, para deixar de ser extremamente pobre, ninguém pode
ganhar menos do que R$ 70 por mês. Logo, há necessidade de nove complementos de
R$ 36 (R$ 324). A conta final é R$ 306 + R$ 324 = R$ 630.
As exigências:
vacinar crianças até sete anos, fazer pré-natal (gestantes), ter frequência
escolar de 85% (de seis a 15 anos), 75% (16 e 17 anos) e presença de 85% em
serviços socioeducativos oferecidos por prefeituras.
Fonte: Aline Custódio
(textos) e Mateus Bruxel (fotos) | DIÁRIO GAÚCHO
Nenhum comentário:
Postar um comentário