Vladimir Duarte Dias percebe "estado de guerra" na redeFoto: Jefferson Botega / Agência RBS
Com cinco recibos de ambulância sobre a
mesa, empilhados sobre os exames que na quinta-feira passada diagnosticaram um
mieloma múltiplo avançado em seu filho de 52 anos, o consultor em investimento
e comércio exterior Vladimir Duarte Dias, 80 anos, remói o sentimento de
impotência de quem enfrentou o calvário em busca de um leito de emergência na
rede de saúde. E perdeu.
Entre quinta e domingo, a família apelou
para uma dúzia de médicos conhecidos, telefonou para quatro hospitais
credenciados ao IPE, passou cinco horas com o filho em frente ao Hospital de
Clínicas. Mas a morte chegou antes do atendimento de que buscavam.
A peregrinação, que revela mais um
capítulo da crônica superlotação da rede, começou no dia 11 de março. Como Luiz
Marcelo Dias andava apático e quase não comia, o pai decidiu buscar ajuda.
Embora tomasse medicação contínua para esquizofrenia, o morador do bairro
Petrópolis mantinha um quadro estável nos últimos oito anos, o que fez o pai
desconfiar de que algo mais estava acontecendo. A primeira tentativa de
atendimento foi na Santa Casa. Ao chegar na emergência do hospital Dom Vicente
Scherer, o consultor desanimou ao ver uma placa avisando que o tempo mínimo de
espera era de sete horas.
Para ganhar tempo, optou por interná-lo no
Hospital Espírita, em uma ala psiquiátrica. Paralelamente, agendou a realização
de exames pelo IPE, o plano de saúde da família, no Hospital da PUC. Diante da
descoberta de que o filho estava com metástase nos ossos, na coluna e no
quadril, com diagnósticos obtidos entre quinta e sexta-feira, se intensificou a
busca por atendimento especializado. Como Marcelo estava fraco, gemia de dor e
já não comia, a orientação dos médicos do Hospital Espírita era de que
precisava ser transferido para uma emergência. Só que não havia leito
disponível.
Durante três dias, a família recorreu a
todos os caminhos conhecidos para tentar a transferência. Em vão. Nas ligações
para Santa Casa, Hospital da PUC, Hospital Conceição e Hospital Ernesto
Dorneles, ouviram a mesma resposta: todos estavam lotados. Superlotados. No
domingo, com o agravamento do caso, o médico plantonista no Hospital Espírita
ligou ele mesmo para o Clínicas, que teria concordado em receber o paciente. O
pai contratou uma ambulância particular para transportá-lo, testemunhando os
gemidos de dor do filho a cada paralelepípedo que a ambulância percorria até o
destino. Mas a esperança durou pouco. Ao chegar, deparou com portas fechadas.
— Nem olharam o meu filho. Disseram que
aqueles não eram os papéis adequados, que não tínhamos passado pela regulação
do Samu, e não deixaram nem passar da porta — lamenta.
Depois de cinco horas de espera, sem que
os contatos telefônicos conseguissem resolver a situação, o paciente acabou
devolvido para o Hospital Espírita. Oito horas mais tarde, o pai recebeu o
telefonema com a notícia que tanto temia.
— Ele só voltou para morrer — chora o pai,
que enterrou o filho às 17h de segunda-feira, no Cemitério São Miguel e Almas.
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Pai percebe
"estado de guerra"
Formado em ciências políticas e atuariais,
com pós-graduação em Desenvolvimento Econômico e Social pela Comissão Econômica
para a América Latina da ONU, o consultor Vladimir Duarte Dias têm ciência de
que a morte do filho era um destino previsível diante da gravidade do câncer
descoberto repentinamente.
Mas não se conforma em tê-lo perdido antes
mesmo de conseguir um leito que poderia amenizar seu sofrimento.
— Nessas horas não adiante ter
conhecimento, recurso. O problema é estrutural.
Do alto de sua dor, acredita que a situação
da saúde pública precisa ser encarada como um cenário de guerra pelas
autoridades. Gostaria de ver as forças armadas agindo com hospitais de campana
para ajudar a minimizar o caos reinante, como se faz nos campos de batalha.
— Estamos em um estado de guerra, não pode
ser tratado de forma convencional — defende.
Autor de livros como Genealogia da
Liberdade, também reflete sobre a ganância que teria feito muitos médicos
acastelarem-se em "nos casulos de suas fortalezas de alto padrão e
clientes de grande poder econômico e político". Mas considera que a
principal responsabilidade é do poder público, que não tem plano de ação e age
tentando tapar furos.
— Não adianta brigar com ninguém no
balcão, a responsabilidade pelo que aconteceu está nos palácios, e eles não vão
ouvir.
Apesar de tudo, diz que não sente raiva.
— A raiva não ultrapassa um metro. O amor
é capaz de dar a volta ao mundo.
Paixão por
automobilismo
Apaixonado por automobilismo, Luiz Marcelo
Dias chegou a ser piloto de fórmula especial na juventude. Com o diagnóstico de
esquizofrenia, pouco depois dos 20 anos, passou a ter uma vida mais reclusa,
mas com o aprimoramento dos tratamentos para a doença vinha-se mantendo bem na
última década. Atualmente, morava com a mãe no bairro Petrópolis e jogava tênis
regularmente. Um de seus hobbies era montar e desmontar os motores de dois
calhambeques que mantinha em frente de casa. É lembrado por familiares como uma
pessoa doce, humilde e amorosa.
Fonte:
Letícia Duarte | ZERO HORA
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